O texto aprovado pelo Congresso no chamado pacote “anticrime” (Lei 13.964/2019) e enviado à sanção presidencial, recebeu uma série de vetos do presidente Jair Bolsonaro, que barrou 24 dispositivos, dos quais os deputados e senadores derrubaram 16, entre eles o que acrescenta o §4º ao artigo 8º-A da Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996, com a seguinte redação:
“A captação ambiental feita por um dos interlocutores sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público poderá ser utilizada, em matéria de defesa, quando demonstrada a integridade da gravação”.
As razões do veto presidencial para esse dispositivo, à época, vincularam-se, em essência, ao fato de que o dispositivo — em sendo utilizado unicamente em benefício da defesa — contrariaria o “interesse público”, a partir da intelecção de que não há como se aferir a licitude de uma prova tão somente em relação à parte beneficiada e citou possibilidades de ofensa aos princípios da lealdade, da boa-fé objetiva e cooperação entre os sujeitos processuais. Além disso, consignou que o artigo, na forma como disposto, ensejaria notório retrocesso no combate à criminalidade. Citou, por último, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, em especial o decidido no Inq-QO 2116 [1].
Os fundamentos para o veto, por si só, são problemáticos: a concepção de “interesse público” — nesse caso, de notável vagueza semântica —, em detrimento de uma conformação do texto constitucional, é sempre um termo que reclama ressalvas. Em nome do tal “interesse público”, regimes despóticos se instalaram. De outro lado, o uso retórico de princípios jurídicos também é descabido, como se fosse possível fazer qualquer afirmação e, para justificá-la, lançar mão dos princípios como se fossem autoexplicativos. Princípios não são álibis retóricos.
Superando as razões do veto, o Congresso então resolveu manter o §4º do artigo 8º-A da Lei nº 9.296/96, promovendo, assim, uma “relevante inovação no tratamento legal dado à captação ambiental no ordenamento jurídico brasileiro”, principalmente em razão do entendimento até então consolidado pelo Supremo Tribunal Federal.
Sendo mais simples: agora, a chamada gravação ambiental, que, diferentemente da escuta e da interceptação, é aquela realizada por um dos interlocutores sem a autorização judicial, passa a ter sua utilização permitida unicamente em matéria de defesa, obviamente quando demonstrada a integridade de seu conteúdo.
O STF, de fato, há mais de uma década tem permitido a utilização da gravação ambiental de forma mais abrangente, ou seja, tanto pela acusação, como pela defesa. Aqui podemos mencionar, além do precedente citado pelo veto presidencial, a decisão do Plenário do STF no julgamento do Tema 237, no RE 583937 QO-RG (leading case), sob a relatoria do ministro Cezar Peluso, no qual se estabeleceu a seguinte tese: “É lícita a prova consistente em gravação ambiental realizada por um dos interlocutores sem conhecimento do outro”.
No entanto, a partir de agora, fica claro que, pela nova redação legal, o legislador quis restringir o uso da chamada “gravação clandestina”. Afinal, a Constituição coloca os poderes do seguinte modo: Legislativo, Executivo e Judiciário (LEJ), pela ordem. Não fosse assim, bastaria suprimir o trecho “em matéria de defesa” para legitimar a sua utilização em qualquer caso.
Além do mais, como no Direito Penal vigora o princípio da legalidade estrita, não se admitindo o uso da analogia em prejuízo do acusado, “não restam dúvidas de que, com a entrada em vigor do novo dispositivo, não será mais possível a utilização da gravação ambiental para incriminar”, exceto se precedida de conhecimento da autoridade policial e/ou do Ministério Público.
O texto, em si, é confuso nesse particular: ora, se houver prévio conhecimento do membro do Parquet e da polícia, poderá a gravação clandestina ser usada em prejuízo do réu?
Vamos lá. É verdade que o texto da norma não primou pela melhor técnica legislativa, já que deveria condicionar a realização da captação ambiental — gênero em que são espécies a escuta, a interceptação e a gravação —, realizada sem conhecimento de terceiro, “à prévia e expressa autorização judicial, porque não é crível considerar que a autoridade persecutória poderá supervisionar uma gravação ambiental sem a chancela da justiça”.
De igual forma, a interpretação do novel dispositivo também não pode ser feita de forma isolada como se fosse uma ilha. O parágrafo 4º deve ser considerado no âmbito da integralidade do próprio artigo 8º da Lei de Interceptações Telefônicas, que condiciona a captação ambiental à reserva de jurisdição.
A par de todo esse novo cenário jurídico-penal e a despeito de outras situações problemáticas que virão com o enfrentamento do novo dispositivo, o que nos interessa, nesse momento, é: como ficará a situação do delator?
Quer dizer, se para firmar termo de colaboração premiada o indivíduo entrega ao Ministério Público uma gravação clandestina que incrimina um corréu. Essa prova é válida?
Aqui há um paradoxo: o delator usa o artifício em seu benefício — em favor de sua defesa —, mas, ao mesmo tempo, a utiliza como ferramenta acusatória. Ou seja, o novel dispositivo, em linhas gerais, obstaculiza e permite, simultaneamente, o seu manejo, situação essa que logicamente não foi sopesada quando da fixação de tese pelo STF de que seria possível a utilização da gravação clandestina pelo delator [2].
Na verdade, o caso da delação premiada difere substancialmente de outras situações que já vinham sendo e certamente serão novamente enfrentadas a partir do levantamento definitivo do veto. O que queremos dizer aqui, en passant, vincula-se às situações em que há vítimas em situação de vulnerabilidade. Nessas hipóteses, poderá ela usar da gravação irrestrita para acusar? O Superior Tribunal de Justiça, no Resp nº 1026605, em 2014, decidiu aplicar o princípio da proporcionalidade e reconhecer como válida a utilização da prova, mesmo que obtida clandestinamente, a partir do caso concreto (mãe de um menor que obteve a gravação da conversa com o agressor a partir de uma escuta realizada por terceiro, mais especificamente um detetive particular, sem qualquer autorização da justiça). Isso porque se entendeu que era possível a ponderação (embora feita sem o rigor metodológico exigido por Alexy) entre os princípios jurídicos da inviolabilidade do sigilo telefônico e o princípio da dignidade da pessoa humana, sendo que este último, no caso ventilado, deveria obter peso superior, permitindo-se a obtenção da prova em defesa da vítima.
E não é só. Existem outras situações concretas em que o direito ao sigilo do diálogo é resguardado pela Constituição, como no caso do sigilo profissional. Nesse particular, é possível que um terceiro — réu em ação penal — grave clandestinamente conversa havida entre o corréu e o seu advogado com o pretexto de se defender e imputar a responsabilidade criminal ao outro? Parece-nos que não, na medida em que o texto constitucional garante a inviolabilidade das comunicações havidas entre o causídico e o seu representado.
Por outro lado, na colaboração premiada o colaborador não age como um simples particular, mas, sim — e aqui está o busílis da questão —, como um agente a serviço do interesse persecutório do Estado-acusador. Nessa situação, há uma diferença sintomática porque o colaborador não é vítima e, por isso, não poderá se utilizar desse elemento de prova para incriminar terceiro. Parece evidente que o delator — no âmbito do processo penal de matriz constitucional — deve ser visto como uma testemunha acusatória qualificada. Não é por menos que o Pretório Excelso, no julgamento do Habeas Corpus (HC) nº 157.627, conferiu ao corréu delatado o direito de se manifestar por último.
Portanto, se o réu-delator incorpora o ônus de acusar e fazer “prova” dessa acusação — inclusive porque, para auferir os benefícios da colaboração, precisa efetivamente dizer a verdade — por certo também implementa nova roupagem na perspectiva processual. Em um processo penal constitucional, os direitos e garantias fundamentais do acusado devem sempre ser lidos contra o Estado.
Daí porque — de forma absolutamente clara — a resposta adequada à Carta Magna é, justamente, “a impossibilidade de utilização da gravação clandestina para incriminar outrem, especificamente em casos de colaboração premiada”.
De todo modo, com a entrada em vigor do novo §4º do artigo 8º-A da Lei nº 9.296, essas e outras questões certamente serão submetidas ao Poder Judiciário — no Brasil tudo acaba no protagonismo judicial —, que deverá analisar com cautela todas as hipóteses de incidência da norma, para que a validade da prova obtida em decorrência de uma gravação ambiental seja admitida apenas quando puder ser aproveitada em matéria de defesa, mas nunca em benefício único do Estado-acusador.
[1] A propósito, o inteiro teor das razões para o veto: “A propositura legislativa, ao limitar o uso da prova obtida mediante a captação ambiental apenas pela defesa, contraria o interesse público uma vez que uma prova não deve ser considerada lícita ou ilícita unicamente em razão da parte que beneficiará, sob pena de ofensa ao princípio da lealdade, da boa-fé objetiva e da cooperação entre os sujeitos processuais, além de se representar um retrocesso legislativo no combate ao crime. Ademais, o dispositivo vai de encontro à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que admite utilização como prova da infração criminal a captação ambiental feita por um dos interlocutores, sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público, quando demonstrada a integridade da gravação (v. g. Inq-QO 2116, Relator: Min. Marco Aurélio, Relator p/ Acórdão: Min. Ayres Britto, publicado em 29/02/2012, Tribunal Pleno).”
[2] Os principais julgados que tratam da gravação clandestina foram levados a cabo antes da entrada em vigor da Lei n.º 12.850/2013 – a exemplo do INQ-QO 2.116 e do Tema 237 – legislação que, indubitavelmente, “popularizou” a delação premiada.
Fonte- https://www.conjur.com.br/2021-mai-03/opiniao-gravacao-clandestina-colaboracao-premiada